sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Pancadas literais e literárias.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Carlos Drummond de Andrade

(...)
                                            Teu ombros suportam o mundo
                                            e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
                                            As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
                                            provam apenas que a vida prossegue
                                            e nem todos se libertaram ainda.
                                            Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
                                            prefeririam (os delicados) morrer.
                                            Chegou um tempo em que não adianta morrer.
                                            Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
                                            A vida apenas, sem mistificação.

Às vezes apenas nós entendemos a dor que vem com os dias vividos. São inúmeras as situações que nos trazem conflito e nos demandam tempo e força de vontade para superá-los; não são poucas também as histórias e os exemplos que protagonizamos ou conhecemos de momentos difíceis e decisivos na vida.
A escolha que tomamos em determinada circunstância molda nosso caráter e nossa abnegação a futuras frustrações. Não é o caso de imaginar que ninguém, nunca mais, em lugar algum, vai ter que parar para pensar no próximo passo. Correr na vida em detrimento de pensar nos momentos de angústia, faz com que sejam atropeladas as oportunidades de superação e felicidade.
Religiosamente, acredita-se que a cruz de cada um é diferente, mas nem por isso aberta à suposições de grau e peso. A dor que seu vizinho sente não é necessariamente comparável à sua própria, e achar que se sofre mais, que a vida é mais dura pra você é um tosco tapa olho. Só recebemos aquilo que os ombros podem suportar (acreditando n'Ele como fonte ou não).
"Chega um tempo em que a vida é uma ordem", disse Carlos Drummond de Andrade, e quanto mais se anda, mais se entende que não importam as dificuldades, viver é mais que uma escolha. Em tempos de caos como este em que vivemos, viver é uma ordem pragmática*, embora não tão clara.
Superar as dores das pancadas literais ou das literárias é caminhar à frente da maioria da população que é levada como boi (êhôô, vida de gado) ao matadouro. Não é preciso, no entanto, superar as guerras literais do Afeganistão. Todos temos as próprias batalhas interiores:
Comer aquele bolo com leite condensado e sair da dieta? Ligar para aquele amigo que falou algo que não gostei? Desmarcar com o namorado para sair com as amigas? Mentir para a mãe a respeito do dinheiro que era para pagar o seguro do carro? Para direita ou para a esquerda? Branco ou vermelho? Beatles ou Legião? Machado ou José de Alencar? Rosas ou cravos? Aonde estudar? O que quero ser quando crescer, mãe?!
...todos temos que aprender a sentir o roxo da pancada e vê-la desaparecer aos poucos, deixando em seu lugar o aprendizado de "não, nunca mais vou roubar elástico da costureira pra poder pular na escola, pai"
Ninguém sabe, ao olhar para uma pessoa na rua, as pancadas que essa pessoa já levou ou leva consigo. É válido o exercício do respeito às dores alheias, pois desapegar-se daquilo que nos prende é tarefa árdua, e por vezes deixada de lado por ser de fácil esquecimento. Descobrir-se como pessoa favorece deixar para trás aquilo que achamos muito importante, mas que não nos engrandecem mais.
Não tento, hoje, me desvincular do processo em questão, sou inata da vida e não possuo meios de fugir de suas consequências. Também passo por situações que me desarmam os braços e pior, o coração. Lembro-me das noites mal dormidas e dos dias angustiantes, vendo no relógio do celular os minutos passando, os livros acumulados, os exercícios das apostilas e o sentimento de impotência quando estudei para passar no vestibular da UnB.
Nessas andanças, no entanto, conheci o "Fernandão", nome carinhosamente designado pelos amigos que o admiravam não pela inteligência, mas pelo esforço.
De nome Fernando Henrique dos Santos e 24 anos de idade, Fernandão passou a maior parte de sua vida tendo que superar as dificuldades que, em suas próprias palavras, foram dons divinos.
Aos sete anos, na primeira série, apresentou dificuldades notáveis em seu ensino por causa de sua fala e foi encaminhado a um ensino especial aonde permaneceu por seis anos. Durante seu acompanhamento, aprendeu a ler aos 10 anos e aos 13 foi para a terceira série. Na quinta série conheceu a matéria ciências e se interessou pelo que se estudava nela e quando na sétima série, com seus 16 anos, conheceu a química, apaixonou-se e começou a querer fazer este curso na UnB.
Foram várias tentativas frustradas, porém não negativas, pois todos os resultados contrários que ele recebia, alimentavam seu espírito de criança e o faziam superar a dislexia e o déficit de atenção (THDA) e querer sempre fazer mais pelo seu sonho. Os remédios e exames receitados por profissionais** não fizeram milagre, apenas ajudaram-no em sua concentração e à base de palavras de incentivo e superação, neste ano de 2010, Fernando conseguiu passar no vestibular da UnB  e eu me emocionei ao telefone quando falei com ele parabenizando-o. Seu discurso não mudou: "eu passei na UnB, porém outras pessoas também podem passar. Eu não sou inteligente e sim esforçado, determinado e acredito no espírito de criança de crer que tudo é possivel".
Uma das últimas de sua vida, consta nos dias da realização da prova da UnB, quando as fiscais direcionadas para seu auxìlio na prova instigaram-no a desistir da UnB, alegando sua idade "avançada" e estimulando-o a fazer concurso, faculdade particular ou o PROUNI, "Mas gostei disso, Iasminny, porque busquei a energia que estava oculta. Ela despertou na hora certa".
Desde os 9 anos ele sonha em entrar para a polícia federal, com o curso de química pretende passar, então, no concurso de perito.
Não tenho dúvidas quanto à capacidade de cada um de nós de entender que sempre haverá um amanhã repleto de novidades e caminhadas em pedras, resta-nos acreditar que sim, tudo é possível. Superar os inumeráveis pesares de se estar vivo é tomar posse exatamente dessa arma que nos fortalece.
Aprender a lição do momento para superá-lo ou superar a situação para dela tirar o proveito necessário? Na verdade não importa a ordem, desde que se tenha no coração a coragem de ousar até onde nossos pés não foram e acreditar que é possível dar um passo a mais, quando achamos que já não podemos.

*Pragmatismo - Sistema filosófico que propõe a prática como critério de verdade.
**Não tome remédios sem prescrição médica e não se auto-medique. Em caso de suspeitas, procure um especialista.

Um comentário:

  1. Gostei muito do seu post... e pensar que você não queria publicá-lo (ainda não entendo por que não). Acho que essas historias de superação (como a do Fernandão) servem (e muito) de exemplo. Enfim, quanto à vida gosto de pensar que ela é dura com os moles (a vida é dura com quem é mole)

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