terça-feira, 20 de abril de 2010

e em Brasília....

CRÔNICA DE MEIA IDADE
-BRASÍLIA 50 ANOS-

Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar, então ficou deitado e viu que horas eram, enquanto Clarisse continuava trancada no seu quarto com seus discos e seus livros do Bandeira e do Bauhaus, antes, acostumada a sonhar, já não dormia.
Ainda era translúcida a memória que tinham da festa estranha e com gente esquisita do mês anterior aonde trocaram telefones e decidiram se encontrar. Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas Clarisse preferiu sair para ver o mar e as coisas que ela via na televisão. E assim haviam ficado combinados.
Desde então, Clarisse não entendia porquê seu telefone não tocava nunca ou porquê ele jamais dera notícias. Incomodava-lhe a experiência de ter-se envolvido tanto com tão pouco em troca já que tudo parecia lembrar os gestos, caras e cheiros dele e, não raro, Clarisse pegava-se treinando sua própria voz dizendo frases feitas, ouvidas em algum de seus cd's:
- O céu já foi azul, Eduardo, mas agora é cinza...Veja o sol dessa manhã tão cinza de Brasília, a tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos, Eduardo...

Trrrrriiiimmmmmmmm
Era o telefone do trabalho do Eduardo, mas ele nem chegou a ouví-lo, sentiu-se distraído, impaciente e indeciso. Eram sempre dias difíceis desde aquela festa, mas aquele estava especialmente angustiante: não sabia aonde havia guardado o telefone de Clarisse, insistia em dizer para si mesmo: "Sei que anotei seu telefone em um pedaço de papel e calculei seu ascendente no recibo do aluguel...mas onde eu os coloquei?"
Eram seis horas e ,estressado com o dia, Eduardo desistiu de encontrar o número do telefone de Clarisse no escritório. Já havia muitos motivos para deixar tudo como estava:
- Agora tanto faz, estou indo de volta pra casa!
On the way home, enquanto andava o percurso entre a Firma e a parada de ônibus, lembrou de sua mãe e de seus pedidos de cuidados frequentes, aceitou a imposição psicológica e recitou mentalmente enquanto tentava entender como um só Deus é ao mesmo tempo três, e corria a avenida:
- Nossa Senhora do Cerrado, protetora dos pedestres que atravessam o Eixão às seis horas da tarde, fazei com que eu chegue são e salvo porque vai ter peixada na Analú e domingo, cachorro quente com as crianças na Fernada...
 Entrou em um ônibus no Planalto Central e ficou bestificado com a cidade. Saindo da rodoviária viu as luzes de natal e por um momento esqueceu que seu coração estava incompleto sem a presença de Clarisse.
- Meu Deus, mas que cidade linda! No Ano Novo eu recomeço a trabalhar...

Anoitecera e a linha do horizonte distraía Clarisse: "Aonde está você agora além de aqui dentro de mim?", pensava recostada na janela do metrô, "Já esqueci seu sobrenome, mas continuo me lembrando de você, quero lhe ver, mas nesse horário você deve estar pegando o carro no conserto, vendo a conta do banco, cartão, IPTU...tantas coisas mais importantes do que eu"
Seu suspiro fez virar o rosto de um menino branco, que parecia tentar se divertir, no banco ao lado, mas não se importou; já havia chegado à conclusão de que era impossível ter da vida ,calma e força. Desde que a distância entre ela e Eduardo só aumentava ela só sabia o que era viver em dor o que ninguém entende, tentando ser forte a todo e cada amanhecer.

Clarisse era um animal sentimental que se apegava facilmente ao que despertava seu desejo, cortejava a insanidade para ter seu equilíbrio e, acreditando em possibilidades, não desistiu de Eduardo até aquela noite. Nada mais a iria ferir, decidiu, "Eu já me acostumei com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei...tenho o que ficou de seus olhos castanhos. Adeus, meu grande amor"
Desceu na estação 108 Sul do metrô e enquanto passava as ruas, olhava os mesmos apartamentos acesos, tudo parecia tão normal, e ainda andando teve a impressão de que podia ouvir alguém lhe chamando, dizendo seu nome:
- CLARISSÊÊÊ!!!!

Eduardo, no ônibus, tentava entender por que simplesmente não deixou Clarisse no passado, a sensação parecia cocaína, mas era só tristeza. Talvez a cidade.
O que sentia muitas vezes fazia sentido e hoje à noite não descubriu um motivo que lhe explicasse porque é que não conseguia ver sentido no que sentia e no que procurava: ela. Quando, olhando distraído pela janela, viu um par de olhos observando as luzes dos apartamentos. O sinal havia fechado e o ônibus parara na L2 Sul, seu coração não acreditava no que seus olhos viam, parecia um sonho que há tempos teve e que não se lembrava, nunca lembrava. Levantou-se esbaforido, a adrenalina era como fogo em suas veias, desceu do ônibus e gritou:
-CLARISSÊÊÊ!!!

Clarisse não foi sutil em sua virada, com o coração rígido feito estátua, seu corpo apenas obedeceu ao reflexo de sua chamada, virou-se e teve a sensação de não poder mais respirar. Se houvesse tido apenas a saudade, mas sempre havia algo mais, seja como for, era uma dor que doía no peito instantaneamente aliviado.
O grito também teve efeitos em Eduardo, achava que se sua voz tivesse força igual à imensa dor que sentia, seu grito acordaria a vizinhança inteira...parecia que nunca antes sua voz havia feito tanto esforço com tanta vontade.
Seus olhos se encontraram e suas mãos pareciam saber a presença uma da outra, e se juntaram.
- Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver. O mundo anda tão complicado, você não vai acreditar quando eu lhe contar...

Foram horas conversando, explicações para Clarisse, novidades para Eduardo, e com o amor reflorido pensavam nas possibilidades daquele encontro; a noite merecia uma comemoração.
Eduardo, que não se sentia meio tonto desde a festa estranha, dizia, segurando a mão de Clarisse: "Vamos deixar as janelas abertas e deixar o equilíbrio ir embora, cair com o um saxofone na calçada...Vamos lá, tudo bem, eu só quero me divertir, esquecer de todas as outras noites sem você e ter um lugar legal pra ir...
 - Nós somos tão modernos, Clarisse disse entre sorrisos.
 - Porque esperar se podemos começar tudo de novo, agora mesmo?
 - Então me abraça forte e me diz que estamos distantes de tudo e que temos nosso próprio tempo!Está ficando tão tarde, Eduardo, não quero me separar de você nunca mais.
 - Não, meu amor, ainda é cedo, cedo, cedo, cedo, cedo. Não vá agora, quero antes fazer-lhes honras e promessas e dar-te lembranças e estórias.

(...)
Dez horas

(...)
Meia Noite

TRRRIMMMMMMM
(Ele debaixo do bloco, olhando para a janela do quarto dela. Ela prostrada sobre a varanda do apartamento, olhos nos olhos dele:)
- Não se preocupe, meu amor, vou ficar aqui com um bom livro ou com a TV, por favor cuidado na estrada e quando você voltar, tranque o portão, feche as janelas, apague a luz e saiba que te amo...

O FIM DA HISTÓRIA??

Construíram uma casa há uns dois anos atrás mais ou menos quando os gêmeos vieram. Batalharam grana, e seguraram legal a barra mais pesada que tiveram. Moraram em São Paulo, São João, São Francisco, São Sebastião e sempre voltam pra Brasília quando nossa amizade dá saudade no verão.
Só que nessas férias, não vão viajar porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação!
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?

- Leila para o Jornal Minny.na, edição especial "Brasília 50 anos"-

Carta fictícia escrita pela personagem musical Leila, da música de mesmo nome, relatando a história romântica de outros dois personagens das músicas da Legião Urbana, Eduardo e Clarisse. Minha homenagem aos meio século de vida de Brasília e de memória de Renato Russo, amante e morador do Planalto Central.

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